No dia em que, contra todas as expectativas, FELIZMENTE deram alta ao meu marido, fiquei aterrorizada. Feliz, mas com muito medo. Que faço agora? Como para casa?
Os primeiros tempos não foram fáceis. Juntámos os cacos e viemos para cima. Ele combalido, com dieta líquida, dores e suturas por sarar e eu... SUSPENSA disso tudo.
Os primeiros tempos não foram fáceis. Juntámos os cacos e viemos para cima. Ele combalido, com dieta líquida, dores e suturas por sarar e eu... SUSPENSA disso tudo.
Suspensa em cada suspiro, cada virar na cama, cada gemido. Dormir em vigília. Acordar para ver se respira. Suster a respiração a cada gesto, principalmente a mão no abdómen (como me gela quando leva a mão ao abdómen!)
(Deus meu, poder-se-á viver assim, em sobressalto? Que tortura isto da consciência, a gente saber, saber, SABER que é finito, que está fadado, que não é eterno. Maldita doença; antes dela vivíamos felizes, eternos, inconscientes, sem TER MEDO...)
E a tosse? A tosse... ecoa-me nas entranhas, um frio na barriga, um arrepio, um medo; faz-me lembrar o meu pai. Tinha um poder sobre mim, aquela tosse... o próprio pigarrear que o anunciava à distância punha-nos em alerta. Aquele aclarar de voz controlava a casa.
Naquela altura, quando o meu marido regressou a casa, depois de três semanas de terror e cinco intervenções cirúrgicas, estado de alerta constante. Suspensa. Suspensa da cor da pele (amarelo é mau sinal), suspensa do franzir da testa (alguma dor?), suspensa do medidor de tensões arteriais (estará alta?), suspensa, enfim, do funcionamento de um organismo que, até então, nunca tinha encarado como tal.
Depois o resto. Doía-me a forma como batia a porta dos móveis, como fechava as gavetas, como a irritabilidade carregava no interruptor da casa de banho. Estava a estender roupa, na varanda, e perturbava-me o ruído das cadeiras, ao alinhá-las contra a mesa da sala de jantar; o som das chaves de casa que foram empurradas um centímetro mais para o lado da perfeição, o estalido das revistas encavalitadas numa só pilha em esquadria com a mesa. Doía-me que tentasse corrigir o mundo, pôr ordem na vida e nas coisas. Nunca está arrumada, esta casa nunca está arrumada, tudo fora de sítio, está sempre tudo fora de sítio.
(A nossa casa não é sempre, nem nunca. É uma casa normal, de gente comum, com duas crianças que o são.)
Mas o que mais doía era a veemência desses gestos, a ... violência? o ... inconformismo? a ... raiva? Não sei. Traziam-me vibrações de descontentamento e sentia-me triste por ele. Por constatar que, afinal, havia tantas feridas a curar por dentro como por fora.
Trinta anos de tabagismo e a síndrome de abstinência para me ajudar a perceber a irritabilidade. Espaço para lamber as feridas. Paciência e carinho para as sarar.
Ontem suspendeu-se a medicação da hipocoagulação, para que estudos hepáticos possam ser feitos, a fim de chegarmos à causa de tudo. Descobrir seria bom, fechávamos um ciclo. Contudo, é um risco - e com o risco volta tudo. Insónia, pesadelos, ansiedade. Analisar o tom de pele, ouvir a respiração no escuro, interrogar da sua disposição com uma insistência que o incomoda. Voltei a estar suspensa.
Depois o resto. Doía-me a forma como batia a porta dos móveis, como fechava as gavetas, como a irritabilidade carregava no interruptor da casa de banho. Estava a estender roupa, na varanda, e perturbava-me o ruído das cadeiras, ao alinhá-las contra a mesa da sala de jantar; o som das chaves de casa que foram empurradas um centímetro mais para o lado da perfeição, o estalido das revistas encavalitadas numa só pilha em esquadria com a mesa. Doía-me que tentasse corrigir o mundo, pôr ordem na vida e nas coisas. Nunca está arrumada, esta casa nunca está arrumada, tudo fora de sítio, está sempre tudo fora de sítio.
(A nossa casa não é sempre, nem nunca. É uma casa normal, de gente comum, com duas crianças que o são.)
Mas o que mais doía era a veemência desses gestos, a ... violência? o ... inconformismo? a ... raiva? Não sei. Traziam-me vibrações de descontentamento e sentia-me triste por ele. Por constatar que, afinal, havia tantas feridas a curar por dentro como por fora.
Trinta anos de tabagismo e a síndrome de abstinência para me ajudar a perceber a irritabilidade. Espaço para lamber as feridas. Paciência e carinho para as sarar.
Ontem suspendeu-se a medicação da hipocoagulação, para que estudos hepáticos possam ser feitos, a fim de chegarmos à causa de tudo. Descobrir seria bom, fechávamos um ciclo. Contudo, é um risco - e com o risco volta tudo. Insónia, pesadelos, ansiedade. Analisar o tom de pele, ouvir a respiração no escuro, interrogar da sua disposição com uma insistência que o incomoda. Voltei a estar suspensa.
Força, paciência, carinho e amor!
ReplyDeleteVai correr bem e este ciclo vai finalmente fechar-se.
O mais complicado de tudo isto é o que sobrevém em termos psicológicos depois de ultrapassada a tempestade. É contra este estado de coisas que vocês devem lutar com a ajuda de todos.
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