Tuesday, January 19, 2016

Estagiária desfocada

 Eu confesso. Aqueles acentos circunflexos na ficha dos SINÔNIMOS já me andavam a morder na alma há uns tempinhos. Agora sublinha os sinônimos, agora encontra os antônimos. (Qui legau, cara, sem grilo, não tarda estão a pedir-nos um equivalente para ônibus ou trem!)

 Depois eram carradas de fichas e fichinhas para mostrar que faz, três estagiárias a mostrar que fazem para três áreas curriculares, façam as contas às horas de trabalho de casa diário que isso dá. Contudo a gente condescende... estão em formação, querem mostrar serviço...num esquenta, não, viu?

A seguir foram as ilustrações de uma história para recortar e ordenar de acordo com a sequência narrativa... que não tínhamos, que a criança já não recordava, que a adulta-licenciada-em-português que a estava a auxiliar também não conseguiu deslindar ... e, vai daí, Google com o título, de certeza que não teremos de fuçar muito. Bingo! Assim se faz um estágio em Portugal. Corta, cola, táandar, praquemébacalhaubasta... Como é que eu hei-de explicar... aquilo começou a deixar-me assim um bocadinho desagradada, começou assim a mexer com a minha bílis esforçada de rapariga aplicada, trabalhadora, empenhada e já nem digo perfeccionista para não magoar ninguém.

Seguidamente estudaram o aparelho digestivo. Raios me parta se não andava tão traumatizada com os acentos, que não tive de ir verificar se ânus o levava mesmo! Não era preciso - desta vez bastou-me recorrer ao santo separador Google imagens para perceber que a falta de zelo profissional não se ficava pela acentuação; passava também pela apropriação de materiais elaborados por outros colegas, sem o mínimo de adaptação, correção ou retoque, já para não falar em mencionar as fontes... 

O céu, o paraíso do estagiário moderno,  a tríade divina - motor de busca, impressora, fotocopiadora. Tá no ir! A geração googlesca transpira competência, desde que não falte a luz.

Num outro dia, era mais uma fichinha de matemática, carregada de ilustrações de gosto duvidoso, palhacinhos sorridentes a segurar em tabuadas... a paupérrima digitalização das imagens a denunciar a desautoria, o plágio e o que, a esta altura, eu já encarava como total ausência de brio profissional.

Recorta com a tesourinha todas as respostas da página anterior!
Uma outra houve ainda em que os meninos tinham de legendar uma imagem do aparelho digestivo, salvo erro. Segundo a instrução, havia que recortar as etiquetas com os termos (boca, esófago e afins) e colá-las no sítio certo. Perfeito. Não fosse a criança ter estado todo  o quarto de hora anterior a resolver as perguntas que estavam no verso dessa MESMA folha!

E, claro, para que eu não sentisse falta do acento do chapeuzinho, de seguida estudou-se o aparelho respiratório, comigo a engolir golfadas de oxigÊnio para não fazer comentários jocosos à falta de zelo da novata. Há que começar por algum lado, não é? Hoje em dia começa-se e termina-se os estudos conjugando um único verbo "sacar" ou para não mudar de registo "baixar" da net!

Confesso que já começava a desassossegar-me com os ... deslizes da novata. Até que hoje chega mais uma mão cheia de fotocópias, pupila made. A inexperiência não justifica tudo. Estava eu a incomodar-me com a ilegibilidade de um texto de quatro páginas que ela tinha cortado como imagem, colado e e esticado até aos limites da desformatação, quando me pedem ajuda para encontrar nomes colectivos num conjunto de palavras onde, seja eu ceguinha, não havia se não nomes comuns no plural!Sapatos, muitos sapatos, colectivo, claro está!

Eu gostaria de sublinhar que esta principiante não é brasileira, nem vesga, nem míope, o que justificaria os sinônimos e as imagens desfocadas. E também que esta estagiária é um nome colectivo. São várias. Apoquenta-me. Porque do que se trata é de um estágio desfocado do essencial - o rigor, a seriedade e o profissionalismo.

Thursday, January 14, 2016

Emocionalmente limpinha

No outro dia, à conversa com uma investigadora do sono, fiz uma descoberta retemperante. Ao contrário do meu sono que, na generalidade, não o é. (ou, pelo menos, assim o julgava eu)  
Falei-lhe de como são tumultuosas as minhas noites, como me atormentam pesadelos sistemáticos, verosímeis e por vezes até realistas, carregados de tensões da vida real que se repetem enquanto durmo. Como se reproduzisse de noite o que vivo durante o dia. Com a agravante de me lembrar de tudo ao despertar. Gostaria de usufruir de uma noite de efectivo repouso. Ou então da dádiva de não me recordar de nada. Indaguei se os fármacos ajudariam ou se servem apenas para as insónias. É que eu não tenho dificuldade em adormecer, a maior parte das vezes estou em luta com o sono para acabar de ler um capítulo qualquer. 

O que eu tenho é dificuldade em  Desligar.                      Apagar.                    Desactivar. 

Sempre considerei isso um defeito. Depois deste insight comecei a ponderar outra perspectiva.

Em primeiro lugar, explicou-me que essa "noite toda" são apenas trinta minutos. Portanto, menina marta, se te sentes exausta depois de uma noite de repouso, vai para a cama mais cedo porque não andas a dormir o suficiente.

Depois, revelou-me que os sonhos são o nosso espaço de limpeza emocional, onde destilamos tudo o que nos preocupa no dia-a-dia e que, normalmente, as pessoas que sonham muito são pessoas mais felizes. 
Eu já sabia, da psicologia, da teoria dos sonhos de Freud e da teoria psicanalítica do ego, do superego e do id, o desejo reprimido, o recalcamento, bem que eu já tinha estudado essa tralha toda.  

A questão é: eu nunca  tinha encarado esse processo de dormir e sonhar como um processo de higienização do meu ego, positivo para a vida acordada. Afinal, sou uma pessoa bem limpinha porque passo a noite toda  a aspirar o sótão.

Se esse é o espaço onde vou matar saudades das perdas, enfrentar medos que não assumo à luz do dia, resolver rancores, acomodar frustrações, concretizar libidos recalcadas (lol para este)...
E se esse é o processo que me permite, no meu quotidiano,  ser melhor pessoa, ser mais meiga e tolerante com os outros, que me permite evitar conflitos, que me permite não viver amargurada porque já tudo amarguei - limpei, reciclei, higienizei - no sonho,

então seja: sou muito lavadinha na alma e ainda bem que tenho tantos pesadelos, sabonetes das manchas e nódoas com que a encardimos no dia-a-dia.