No dia do pai a Mary desenhou-o com uma enorme cicatriz na barriga. Agora, assim que o jantar termina, enfiam-se-lhe na cama abraçadinhos a ele, a ver os Morangos Com Açucar e o Shin-Chan. Felizes por tê-lo em casa. Isso enche-me o coração. Não podemos negar que estas hospitalizações deixam cicatrizes na nossa família, por dentro e por fora. Pelos vistos, não apenas no pai. Os pequenos ajudam os grandes a cicatrizar. Isso vale ouro.
De novo, subir aquelas escadas em mármore. O coração aos pontapés dentro do peito e não do esforço. Uma angústia visceral, um nó nas tripas. Aqueles degraus que subi grávida para ir dar à luz o Pedro. E depois a Maria. E depois a pisar com força a mármore branca e gélida pelo Renato, a correr, a correr, escada acima, como se tivesse urgência. Como se pudesse diminuir a urgência dele. Como se correndo lhe salvasse a vida. Os degraus tão marmóreos, eu a ferver. Daquela vez. E agora. Com o coração aos pulos e a respiração alterada chego à antesala do bloco. A espera. Como há um ano. O relógio de parede. Dou voltas naqueles metros quadrados. Assomo à janela, vejo a ambulância, lá em baixo, a que o levou para o Porto, em risco de vida. Abano a cabeça, para afastar as memórias. É inevitável. O mesmo sítio. O mesmo aperto. A mesma angústia. Caminho para cá e para lá. Tenho a garganta seca. O relógio devolve-me a mesma hora, mais dois minutos passados. Volto à janela, para olhar para fora. Cá dentro está um ar abafado; há um grupo de populares a visitar um doente, cheiram a fumeiro e pouca higiene. Nauseia-me. O meu estômago aperta-se, dá umas voltas, como um nó. Da janela, desta vez, olho para o céu. E rezo.
Duas horas e meia. Não sei se respirei nesse período. O cirurgião vem ter comigo. Correu tudo bem, mas temos de conversar. Nesse momento sei que não respirei. Correu tudo bem. E eu à espera do mas, do no entanto, do ainda assim. Dificuldades técnicas, mudar a câmara, aderências, procedimentos a seguir. Para além de não respirar, parece-me que também deixei de ouvir bem. Só a visão, apuradíssima. Fixava regaladamente o fundo daqueles olhos azuis do cirurgião, à procura de uma certeza, de um alívio, de um sinal para poder respirar outra vez. Estava com suores frios e ocorreu-me que estivesse prestes a desmaiar. Respira fundo, ordenei-me internamente. Finalmente um mas libertador. Mas está tudo bem e vai recuperar.
Lençóis brancos com logótipo azul. Tubos e soros pendurados. Máquina com dígitos vermelhos. Recobro. Já basta!