Saturday, February 27, 2016

Correr


Confesso que me custa muito entender esta febre de sair por aí fora a dar à sapatilha a toda a velocidade. Tenho um primo que toda a vida fez quilómetros, de verão, de inverno, na estrada, à beira-mar, montanha acima, na própria praia. Vejo que é feliz ao fazê-lo, respeito isso. Tinha uma amiga que se levantava às seis da manhã, praticava atletismo antes de ir para as aulas; era feliz ao fazê-lo, respeito muito isso também.
Agora, esta moda do running que faz com que qualquer indivíduo sedentário se proponha "treinar" para uma maratona em três meses... uuummmm. Depois, Maria-vai-com-as-outras, neste caso é mais Manel, porque me parece mais flagrante nos homens, se algum se começa a entusiasmar por umas provas, eu cá não me fico, nem que vá a pé e saia de ambulância. "Mas... costumas correr?"; "Não, fui só com eles"... e se o meu melhor amigo fosse pára-quedista, tinha-me atirado de um avião ... Como explicar isto, acho um disparate que alguém ouse inscrever-se numa S.Silvestre com a ligeireza de quem compra uma raspadinha... para tentar a sorte!
Na parte que me toca, eu detesto correr. Eu até tenho a minha costela desportista, toda a vida fiz desporto - ballet, patinagem, aeróbica, hiphop, step (da infância à juventude), hidroginástica na gravidez e,agora, musculação. Eu até entendo os efeitos viciantes do desporto, essa parte eu compreendo. Mas correr não me agrada nada. Parece-me monótono; tem muito impacto nas articulações e no resto... parece que tudo abana (lol), que os orgãos internos andam todos aos trambolhões e sai tudo do sítio! Não, para mim, não. Sei que é muito salutar, que traz muitos benefícios e percebo que seja desafiante, percebo a superação de si mesmo, sinto isso nos meus treinos, mas não gosto de correr. Percebo a paixão, para quem a tem. Uma amiga que corre (há anos, desde antes da febre) explicou-me que se sente "como uma gazela", que a dada altura sente que era capaz de correr, correr, correr sem parar, que a sensação de liberdade é extraordinária. Compreendo, mas não partilho.
 O que me confunde é esta democratização da corrida, a panaceia para todos os nossos males, acessível a todos e desejável por todos.  Toda a gente corre, quer correr ou acha que deveria correr. Fazem-se posts de percursos nas redes sociais. Compra-se equipamento topo de gama para dar uma volta ao parque num fim-de-semana em que os astros estejam alinhados, o sol brilhe e a vontade de aterrar no sofá não vença. Acho que vale cada esforço. Só me faz impressão que se mascare a corridinha dominical amadora com um pretenso profissionalismo de ponta.
Portanto, todo aquele running, jogging ou sofrering não são para mim. Reduzo-me ao meu limitado treinito com pesos e, para aquecer, dou umas passadas largas, às vezes até em corrida, na passadeira do ginásio. Mas isso não vale. Frequento um ginásio de apoio a uma clínica de fisioterapia onde, por isso mesmo, me sinto uma verdadeira fitness star, já que a maioria dos utilizadores estão em recuperação e/ou são consideravelmente mais velhos do que eu. "Professor, já acabei no andarilho, agora vou para a bicicleta?" Por forma que, não me me posso orgulhar muito das minhas marcas quilométricas sem passar por ser a rainha do andarilho... Acho que, um dia destes, terei de dar uma hipótese à corrida. Quanto mais não fosse, para poder acompanhar, na areia, o meu primo que regressa sempre tão radiante, tão suado e tão feliz daquelas passadas à beira do mar iluminado de vermelho-rosa ao pôr-do-sol!









Monday, February 22, 2016

Corações (mais) grandes

  No sábado festejámos o aniversário da Maria com a verdadeira festa pink, dos balões ao bolo (que acumulava  a rosice com uma princesa de cabelos castanhos encaracolados como os da homenageada) - enfim, um sonho com tudo a que a nossa pequenita tem direito. 
  A gente já tinha ouvido falar dele. Já. Mas, no barulho das luzes, ainda não tínhamos... visto o filme todo. A Mary quis convidar a escola toda. Tal e qual. E nós embarcámos. Quarenta convites com príncipes e princesas foram distribuídos, de sorriso nos lábios, pela nossa pequena despenteada. Nessa mesma noite o pai desabafava - "já viste nas que nos metemos, e se vêm TODOS?". Eu e os números, lá me apercebi do risco, mas assegurei-o que não viriam nem metade. (E mesmo a metade...num apartamento!) No barulho, então, desta ribalta a serigaita lá ia dizendo que vinha  a Sara, a Francisca, a Ana Maria, o João e o Tiago. O meu namorado. Rimo-nos e gozámos com ela. Ela, de sorriso maroto, mas muito segura de si, repetia "sim o Tiago, ele é o meu namorado, porquê, não pode?"
  Sábado à tarde. Começam a chegar os convidados que, para alívio dos graúdos não ultrapassaram a dezena. Toca a campainha. Pelo intercomunicador percebemos que é o Tiago. Saltos de euforia. (!!!) O Tiago entra, oferece uma prenda. Um adulto diz "Então vocês não se cumprimentam?", o Tiago dá meia volta, espeta um beijo na boca da Maria e os adultos ficam todos sem jeito, embaraçados e sem palavras. As crianças, não. Vão brincar com toda a naturalidade.

  Hoje, o Pedro, fecha a porta da cozinha, quer falar a sós comigo, contar-me um segredo. Começa assim (eu acho o começo mais delicioso que o desfecho!!!): "Sabes que a vida dá muitas voltas, mãe, e a minha hoje deu uma volta espectacular!" (abraça-se a mim) ... o segredo não conto, por ser segredo, mas eram amores também.

Gosto que gostem de nos contar. 
Gosto que as mãos sejam cada vez menos pequeninas e que os corações sejam cada vez maiores.

Sunday, February 14, 2016

Expressão

  «No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.
Ele estava no princípio com Deus.
Tudo foi feito por ele; e nada do que tem sido feito, foi feito sem ele.
Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens.»
(João 1:1-4)

 
      No outro dia ouvi um homem dizer a outro homem que era seu irmão: "só te estou a dizer isto  porque te quero bem. Preocupo-me contigo e gosto de ti." Achei que era bonito, que era um salto civilizacional. Tantas gerações de homens que não choraram e foram formatados para ser duros e mudos. Tão duro há-de ter sido o colete de forças cultural que, durante décadas deve ter sido difícil, para muitos, verbalizar o que havia dentro. Beijar. Abraçar. Quanto mais dizer. De forma que, me parece, ainda hoje, que para muitos homens a expressão dos afectos é ainda uma linguagem nova. A tactear. Bem hajam e desbravem, sem medo, a sensação há-de ser libertadora.
      Sou mãe de um pequeno homem. Gostaria que viesse a alcançar a expressão que o aproximará do outro e lhe apaziguará a torrente de emoções que traz no peito. Nem sempre é fácil. Há palavras pesadas. "Saudade". "Perdoa-me". "Sim". "Tenho medo"."Ajuda-me". "Amo-te", em certos momentos. Pesadas. Espero que possa com elas, o meu homenzinho, para que o seja com letra grande.
      Sou extremamente verbal. Considero a palavra uma dádiva. Imaginar-me numa situação em que a expressão me fosse vetada é, para mim, aflitivo. Uma ditadura. Um país estrangeiro sem tradutor ou intérprete. Uma situação em que não pudesse passar a minha mensagem; fazer-me ouvir. Por isso não alinho nas assumpções de inerência , no não-vale-a-pena-ele-já-sabe. Expressar (amor) é libertador para quem emite e impulsionador para quem recebe. Empowering para ambos.
      Claro que há muitas maneiras de dizer amo-te. "À homem." - pago-te uma cerveja; queres vir tomar um café?; vou contigo... mas dizer. Dizer. Não tem preço. Gosto de viver num mundo em que os homens também dizem "Preocupo-me contigo e gosto de ti". O Verbo é divino.


Thursday, February 4, 2016

Maria xójinha

      A minha filha joga sozinha ao monopólio. E ri-se sozinha. E celebra quando dá a volta ao tabuleiro. Sozinha. E interage. Consigo mesma. "Já tenho estes cartões todos, só me falta um para ganhar". (a quem? LOL) A dada altura lembra-se que eu existo na outra ponta da sala: " mãe! Eu vou ganhar!". Normalmente satisfaz-se com um boa-filha-muito-bem e volta ao seu mundo. O espírito independente da Maria é uma benção divina.

      Muito precoce na sua autonomia. Ainda não tinha completado os dois anos quando me informou que queria deixar a fralda. Assim mesmo. A decisão foi dela. Eu fui apenas informada. Porque a partir desse momento nada mais pude fazer, nem de dia, nem de noite, para impeli-la a usar fralda, nem que fosse só por precaução. Bem tentei argumentar, que no verão era melhor; que na caminha, a nanar e tal. Em vão. ELA já havia tomado uma decisão. 

      Como nas ouvidites (ler aqui e aqui), sempre a pequena a tomar as rédeas da sua vida, mesmo quando estamos desatentos. Admiro-a, por isso.

     Desenvolta, despachada, autónoma. De pequenina, de manhã cedo, eu a ferver, com os minutos contados para ir trabalhar e ela "Xójinha" e a chorar se eu insistisse em ajudar. Xójinha os collants (socorro!!!), xójinha os cordões das sapatilhas, xójinha a carregar a mochila para a escolinha, mesmo que, na altura, fosse quase do tamanho dela! O xójinha dela ia-me criando uma ulcera nervosa a mim!

     Assim que aprendeu a andar de bicicleta, ainda com rodinhas, das primeiras, aquelas que parecem triciclos, lá foi ela. Ganhou asas... nos pés. Era vê-la, a dar a volta toda ao parque e, mais uma vez, xójinha! As outras mães olhavam-me de soslaio, perguntavam por ela (pequenina)... "está lá ao fundo..." ousavam indagar "e vai sozinha?" Não saberia explicar-lhes que sim, que era a Maria, não havia problema, é uma menina independente e muito responsável. "Não tens medo que fuja para a estrada?" Não, não tenho. Trata-se da Maria. Ela já volta. Como de facto, com as mãos pequeninas cheias de flores pequeninas, brancas e amarelas, já meias quebradas por virem seguras entre as mãozinhas dela e o volante. Doçura.

     Lembro-me tantas vezes da seguinte cena emblemática. Sábado à tarde. Ambos no sofá. Digo "Meninos, se querem ir ao parque toca a ir calçar as sapatilhas" (teriam... 3 e 5 anos, respectivamente). Ela, levanta-se com aquele jeito despachado dela, vai ao quarto, calça-se e volta num instante para a sala com as sapatilhas do irmão (MAIS VELHO!!!!) na mão!  Ele, por sua vez, continua esparramado no sofá. Ela tenta enfiar-lhas nos pés. Observo a cena e não me contenho "Ó Pedro, então a tua mana é mais pequena que tu e ela é que te vai buscar as sapatilhas?". Ele encolhe os ombros e diz "ó, ela vai..."

      Amanhã é festa de Carnaval na escolinha. A Maria já me tinha informado que não precisava gastar dinheiro este ano, porque levava o disfarce de elefante que ainda lhe servia muito bem. Hoje pediu-me para levar também o vestido da princesa. Para emprestar à amiga, que não tem nenhum. Enche-me a alma sabe-la solidária. Cinco anos que tomam decisões a pensar nos outros. Orgulho.

      Depois, o pragmatismo. Pão, pão, queijo, queijo. Nem sei como definir isto - sempre que, em família, verbalizamos um obstáculo, uma dúvida, um nó Górdio, a Mary é a primeira a dar resposta. E, por regra, com muita pertinência. Ocorre-me a expressão inglesa para definir esta sua capacidade de resolução de problemas ("problem-solving skills"). Fala com tanta propriedade que, por vezes, surpreendida, chego a perguntar-lhe "como sabes isso, pequenina? onde aprendeste?", ao que me responde " em lado nenhum, tirei da minha cabeça". 
      "Eh pá, partiu-se isto!" - "Cola-se, não é?"
      "O pai nunca mais chega..." - "Telefona-lhe!"
       "Está frio? Nem sei se hei-de levar casaco..." - "Levas e se não tiveres frio deixas no carro"
       "Já nem me lembro por que rua era..." - "Tentas por esta, se não for, voltas para trás"
   
      Dá para perceber o padrão?
     
      Sempre que reflicto sobre isto, digo a mim mesma que tenho de escutá-la mais. Confiar. Na sua simplicidade, na sua intuição. Descomplica e resolve. Xójinha.