Friday, December 4, 2015

Uivar

Há um cão que uiva no terraço da vizinha.
Questão que sempre me intrigou: porque uivarão os cães? que mágoa lhes irá na alma? saudades de alguém? sentem-se presos? quererão fugir? pressentirão desgraças? doenças, mortes, a tristeza dos outros? terão medo? adivinham trovoadas? terramotos?
Porque me entrará nas entranhas este uivo agudo? Que ecoará em mim este grito de desespero? Há dias em que me apetecia poder uivar como ele. Com os pulmões todos e sem escrúpulos.
Alguém diria, porque gane a vizinha, que lhe dói, ou então confundiam-me com ele e nem davam por nada. Afinal que razões tenho para querê-lo? A morte da minha mãe, as birras dos miúdos, uma palavra torta do marido, o cancro do amigo de 40 anos que tem quatro filhos menores, nada, porque uivas rapariga, porquê esse grito profundo que sai para dentro e não de encontro ao luar como o do cão da vizinha?
Tiroteios, crianças que desembocam em praias, pais que atravessam países a pé com filhos ao colo, botes de borracha que enterram vidas no mar, atentados, que te mói? Que imagens trazes aí dentro a uivar baixinho? Um país que não se endireita, um mundo em tumulto e desconcerto, que razões te mastigam a alma, uma mãe que partiu e já não faz mexidos há quatro natais, também os fazes bem, é assim a vida, agora faze-los tu, é a tua vez, depois a tua Maria, quem sabe o teu Pedro, ambos a uivar baixinho, enquanto partem o pão? Atentados em cidades-luz, que só percebias com glamour e agora sangue e corpos pelo chão? Apetecia uivar com força, como ele faz, sem escrúpulos, à luz da lua, à luz do dia, sem pudores, nem recalcamentos.
Choramos tão pouco; tem que ser bonito e alegre, como nos filmes. Redes sociais carregadas de imagens perfeitas, viagens, jantares, árvores de natal com luzinhas e crianças à volta dela, bem vestidinhas, sem nódoas, com sorrisos e sem teimas nem birras. Ninguém uiva no facebook. Mesmo os movimentos solidários que aí surgem, os casos difíceis que aí se descrevem, crianças carecas no IPO, perfis a três cores, pela França, tudo envolto nalgum romantismo, como se não fosse real, como se fosse só virtual, como se fossem filmes, ficções, nadas para nos sentirmos bem com o nosso quotidiano sem isso. Ninguém se exalta na sociedade contemporânea. E, no entanto, xanacs e depressões e gente que enrola bombas à cintura e se detona...
Trago o uivo do cão da vizinha cá dentro, como uma faca que fere e angustia, precisava de uivar com ele, nem que fosse uma só vez. Que digo? Uma, duas, mil vezes, horas, noites inteiras a carpir nadas; que razões, vizinha do cão que chora? Deitar de uma vez cá para fora histórias de meninos com vidas difíceis com quem trabalho e que absorvo como uma esponja. Uivar a morte da minha mãe que nunca chorei. Uivar a exigência da maternidade. Fotos bonitas de crianças a sorrir, a pendurar bolinhas na árvore de natal e, no entanto, birras; e, no entanto, desaforos; e, no entanto, confrontos. Deve ser mais fácil para as cadelas. Amamentam, nutrem e lambem. Mas, mesmo assim, uivam. Eu não, mas gostava. Agora este aperto. Um país que não se endireita, meninos a brincar aos governos, sem abrigos na rua, pensões que não pagam medicamentos, hospitais a rebentar pelas costuras de doentes e sem médicos para pôr remendos;um mundo às avessas, corrupção, violência, terrorismo.
Trago o uivo do cão da vizinha cá dentro, como uma faca que fere e angustia, precisava de uivar com ele, mil vezes, horas, noites inteiras a carpir nadas; que razões, vizinha do cão que chora?
Quero uivar com o cão da vizinha.

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