Wednesday, May 27, 2015

Suspensa

No dia em que, contra todas as expectativas, FELIZMENTE deram alta ao meu marido, fiquei aterrorizada. Feliz, mas com muito medo. Que faço agora? Como para casa?

Os primeiros tempos não foram fáceis. Juntámos os cacos e viemos para cima. Ele combalido, com dieta líquida, dores e suturas por sarar e eu... SUSPENSA disso tudo.
Suspensa em cada suspiro, cada virar na cama, cada gemido. Dormir em vigília. Acordar para ver se respira. Suster a respiração a cada gesto, principalmente a mão no abdómen (como me gela quando leva a mão ao abdómen!)
(Deus meu, poder-se-á viver assim, em sobressalto? Que tortura isto da consciência, a gente saber, saber, SABER que é finito, que está fadado, que não é eterno. Maldita doença; antes dela vivíamos felizes, eternos, inconscientes, sem TER MEDO...) 

E a tosse? A tosse... ecoa-me nas entranhas, um frio na barriga, um arrepio, um medo; faz-me lembrar o meu pai. Tinha um poder sobre mim, aquela tosse... o próprio pigarrear que o anunciava à distância punha-nos em alerta. Aquele aclarar de voz controlava a casa. 

Naquela altura, quando o meu marido regressou a casa, depois de três semanas de terror e cinco intervenções cirúrgicas, estado de alerta constante. Suspensa. Suspensa da cor da pele (amarelo é mau sinal), suspensa do franzir da testa (alguma dor?), suspensa do medidor de tensões arteriais (estará alta?), suspensa, enfim, do funcionamento de um organismo que, até então, nunca tinha encarado como tal.
Depois o resto. Doía-me a forma como batia a porta dos móveis, como fechava as gavetas, como a irritabilidade carregava no interruptor da casa de banho. Estava a estender roupa, na varanda, e perturbava-me o ruído das cadeiras, ao alinhá-las contra a mesa da sala de jantar; o som das chaves de casa que foram empurradas um centímetro mais para o lado da perfeição, o estalido das revistas encavalitadas numa só pilha em esquadria com a mesa. Doía-me que tentasse corrigir o mundo, pôr ordem na vida e nas coisas. Nunca está arrumada, esta casa nunca está arrumada, tudo fora de sítio, está sempre tudo fora de sítio.
(A nossa casa não é sempre, nem nunca. É uma casa normal, de gente comum, com duas crianças que o são.)
Mas o que mais doía era a veemência desses gestos, a ... violência? o ... inconformismo? a ... raiva? Não sei. Traziam-me vibrações de descontentamento e sentia-me triste por ele. Por constatar que, afinal, havia tantas feridas a curar por dentro como por fora.
Trinta anos de tabagismo e a síndrome de abstinência para me ajudar a perceber a irritabilidade. Espaço para lamber as feridas. Paciência e carinho para as sarar.

Ontem suspendeu-se a medicação da hipocoagulação, para que estudos hepáticos possam ser feitos, a fim de chegarmos à causa de tudo. Descobrir seria bom, fechávamos um ciclo. Contudo, é um risco - e com o risco volta tudo. Insónia, pesadelos, ansiedade. Analisar o tom de pele, ouvir a respiração no escuro, interrogar da sua disposição com uma insistência que o incomoda.  Voltei a estar suspensa.





Thursday, May 21, 2015

O nada que é tudo

Uma tarde cheia de sol na manta,
            com os miúdos a brincar na relva
                      e o Renato ao meu lado
                            enche-me o coração de alegria.
As pessoas a gabar-lhe o bom aspecto, a rápida recuperação e o ânimo e eu toda vaidade. Orgulho. Como quem exibe o namorado novo às amigas. Olho de soslaio e brinco "está fino", como quem diz, como quem berra, "olha, vês, sobreviveu!" (Que é mais do que simplesmente dizer "está melhor", "está forte", "recuperou", "superou". Expressões todas elas verdadeiras, mas insuficientes. Incompletas. Sobreviveu. Sobreviveu. Não morreu. Venceu a morte. Não é extraordinário, não é um milagre, um verdadeiro herói?)

Uma tarde cheia de sol, sem sombra de tubos, anestesias ou morfina. 
Tê-lo ao meu lado sem hora de visita.

As pessoas encontram-me, nas mais variadas situações, e indagam sobre o meu marido. Gosto de poder dizer que está melhor, mas hoje, por favor, saiam-me da frente que quero usufruir do sol, tenho urgência em ser feliz, entendem? Está uma tarde luminosa e é urgente ser feliz.

 Quando me perguntam, como está, às vezes, sem querer, sai-me "está vivo". Digo-o triunfante, sem sombra de lamúria. Digo-o como uma vitória, uma conquista. Mas, algumas pessoas, para as quais estar vivo é uma banalidade, uma certeza, um nada, olham-me espantadas, sem entender.  Sem entender que estar vivo é, como dizia Pessoa, "o nada que é tudo".

Sunday, May 17, 2015

Lágrimas invisíveis

Ando a ler o quinto livro de crónicas do Lobo Antunes. (Não podia ter vindo mais atempadamente, esta leitura. Colou-se a mim e eu a ela como se estivéssemos estado à espera uma da outra há algum tempo.) A dada altura ele diz que já chorou muitas lágrimas invisíveis e eu, apesar de nunca ter ouvido a expressão, rapidamente percebi o conceito. Também já chorei lágrimas invisíveis, quer das que ficam entaladas no nó da garganta, quer das que voluntariamente forçamos a ficarem penduradas nas pálpebras (sabem como é, vira-se o olhar bem para cima, para que não caiam), quer das que realmente são secas na totalidade, uma negação de si mesmas. Para se ser lágrima dever-se-ia conter água, certo? 
Pois dessas, muitas. Não só em mim, mas nos outros.

Hoje vi uma senhora idosa a chorar convulsivamente sob um sorriso amarelo, lágrimas invisíveis por todo o lado, gritos inaudíveis de desespero. Como as detectei? Como as vi? Pelos soluços. Nunca em toda a minha vida tinha visto assim uma expressão de tristeza tão contida. Corpo e voz trémulos, lágrimas na respiração, nos soluços, mas não nos olhos. Toda ela chorava, menos os olhos. Marcou-me muito a visibilidade flagrante daquelas lágrimas invisíveis.


Monday, May 11, 2015

Perdidos no Porto




De vez em quando a vida chama-nos à razão, põe-nos os pés na terra, bem abaixo da nossa ilusão de imortalidade e, ao invés de nos zangarmos com ela, temos de fazer as pazes e seguir em frente, por caminhos que não planeámos 
(há tão pouco que podemos controlar, como nos atrevemos sequer a fazer planos?) 
por caminhos que vamos descobrindo, improvisando e seguindo sem bússola, meio desnorteados, mas com a mesma garra de sempre. É como estar perdido, no Porto, à hora de ponta. A gente desenrasca-se e acaba por chegar a casa.

Não há lugar mais seguro para a nossa fragilidade humana do que o amor. Uma vez disseste-me "temos a vida toda" e essa foi a maior declaração de amor que já alguma vez me fizeste. Hoje não sei quanto tempo cabe nessa toda vida que temos, mas sei que são nossas todas essas dúvidas, os receios e temores. O assombro de estar vivo, a responsabilidade de frui-lo, de merecê-lo. 

Fizemos amor naquela cama de hospital. Contigo entubado e fraco e eu magra e apavorada. Houve momentos em que nos olhamos nos olhos, como nunca o havíamos feito e o teu corpo entrou no meu de uma forma nova, poderosa e inigualável. As nossa mãos entrelaçadas, tubos a urdir uma nova aliança entre nós, silêncios maiores que sims matrimoniais, esponjas húmidas nos lábios, mais valiosas que beijos apaixonados. Amo-te tão mais do que tinha consciência. Fica. Resiste. Permanece. Aguenta, se puderes. Temos um percurso tão sólido. De conquistas, generosidade e altruísmo. Fica. Prometo ler-te lendas africanas, pela noite dentro, como quando só tínhamos um colchão no chão, juventude e corações cheios de alegria. Sempre tivemos a porta aberta e tampos de mesa improvisados para receber amigos. E carros velhos que davam boleias e transportavam a nossa magia em trastes, de cabana em cabana, atrás do nosso amor. Fica. Preciso que carregues o carro com as nossas malas de afectos... anos a fio, Marão acima, Marão abaixo, a rezingar por tanto saco, mala, maleta e mochila, raio de vida, estou farto de ser cigano, de andar de maço para cabaço 

( tu não vês que nessas malas cabe toda a tua generosidade, o aniversário deste, as maleitas daquele, os arrufos daqueles, toda a infância dos teus filhos partilhada por avós e tios, Quilómetros de afectos. Uma constelação de estradas, atalhos e portagens que contam a nossa história)

Fica. Esta cidade reclama-te. Está um dia lindo lá fora, a cidade está infestada de turistas e temos de ir comer um gelado à Foz. Ou umas sardinhas à Ribeira. Logo à noite vamos ao Púcaros ouvir poesia e eu dedico-te um texto a pedir-te um filho e tu ficas envergonhado com a minha falta de recato. Anda, o que está no Sá da Bandeira? Queres ir comigo dar uma volta na baixa? Se calhar já não há saldos... Anda, Renato, hás-de voltar a tomar banho nos leões, a acertar a vida pelo relógio da Torre dos Clérigos, lembras-te, dizias que era o teu relógio de cozinha, Anda, "põe-te fino", tens um comboio para apanhar, não vais às teóricas, mas és estudante, lembras-te, é duro trabalhar um curso inteiro, sair à noite e manter o posto de trabalho! Anda estão a chamar-te no Piolho, está calor na invicta e tens uma cerveja geladinha numa mesa  de amigos à tua espera...

Páro no semáforo vermelho, não sei muito bem se vou no sentido certo. Perco-me nesta cidade que é tua, a regressar a casa (à casa verde), ao fim do dia, sem ti, desnorteada de todo, perco-me. Quando o verde abrir, viro para a esquerda? onde raio fica a VCI? e para quê voltar a casa sem ti? porque não muda o sinal? que espera aquela gaivota em cima dele? 

Fica. O Pedro quer vir ver-te ao hospital, quer vir ver-te em qualquer lado. A Maria desenha a "nossa casa de Bragança". Nenhum dos dois quer dormir sozinho. Dormimos os três, abraçados ao medo de te perder.    Pai Renato. 

O grande faz muitas perguntas, quando voltas, se voltas, porque demora, porque aconteceu, se vais ficar numa cadeira de rodas, se algum dia voltarás a jogar futebol com ele, se estás melhor, se estás bom, se vais ficar bom. (Perguntas... as mesmas que trago cá dentro, que não me deixam comer, nem dormir). Não há respostas para elas, eu não as tenho, os médicos não as têm. Mas dou-lhas, como posso e sei. Houve momentos em que menti. Não queria tirar-lhe a esperança que o medo  em mim devorava. Houve momentos em que as lágrimas calaram as respostas que não tinha e chorámos juntos e fomos tão família então!    Pai Renato.

A pequena não verbaliza. Por temperamento ou porque não sabe expressar na sua tenra idade tudo o que lhe vai lá dentro. E o que lhe vai lá dentro... tem tido uns desabares de choro inconsoláveis, como te entendo filha, como te entendo, pequenina. Houve uma noite que adormeceu em perfeita convulsão. O mano estava em Bragança, tu no Santo António. Uma hora de choro desesperado, aparentemente por causa de uma maçã. Sem conseguir explicar-se, soltar uma palavra, que não aquele choro desesperado. Não perguntei. Adormeceu a chorar, no meu colo, eu a cantar por cima dos berros, depois por cima dos gemidos, depois por cima dos soluços.    Pai Renato.

Fica. Há um batalhão de gente à tua espera. A família e tantos amigos... sentes, sabes? 
Bragança revelou-se-me. Pertencemos. Amigos, alunos, colegas, vizinhos. Há uma rede invisível. Como um arco-íris, que aparece em circunstâncias particulares. 
Mensagens, telefonemas, Braga, Porto, Bragança, Lisboa, Peniche, Madeira, Londres, tenho a impressão que o mundo inteiro se une para te apoiar. Sentes, sabes?

Fica. Não sei preencher o IRS, detesto levar o carro à inspecção e para que lado se vira a válvula para regular a pressão da caldeira? Estão a sair as listas provisórias dos concursos, quem as vai analisar microscopicamente? Ah, e já agora, desta vez avariei a máquina de lavar loiça...


Fica. Há uma gaivota à tua espera, pendurada num semáforo, em frente a uma mulher ao volante,  perdida no Porto.