Vou ao ginásio com um isqueiro no bolso. Sou um poço de incongruências.
Ocorre-me que sou como tu, que me faltas há três anos, como eu te terei faltado milhares de vezes.
Adoravas pregar partidas, mas querias ser levada a sério. Gostavas de coisas caras, mas qualquer trapinho te ficava bem. Eras da galhofa, da borga, do gozo, mas quando metias mãos ao trabalho eras um furacão. Revejo-me nisso tudo. Nessa força, essa energia vital, essa alegria. "Quando a Luísa está por perto não há tristezas!", diziam-me tantas vezes. Também sou isso. Sabe Deus. Tenho uma vida de cão, e pouco quem me pergunte por ela. Nem sempre é fácil, mas empurro a rir e a fazer rir. Como tu.
Estendo roupa, toneladas dela, e penso sempre em ti. Sou tu. As miúdas pequeninas, muita roupa para lavar e passar. Com uma diferença - tu tinhas um marido que não fazia nada, não sei como conseguias. Mas sou tu, no mesmo bulício, no "levar tudo à minha frente", embora, às vezes, como dizias, "dou-lhe uma e prometo-lhe duas" ou "amanhã há mais". Levei anos para entender esta frase. Dei por mim a inteirá-la, no outro dia, depois de um longo dia de trabalho na escola, e atender os miúdos, e cumprir com as tarefas domésticas básicas e essenciais, e preparar o dia seguinte e olhando em volta para tudo o que ficava por fazer... "amanhã há mais!". Cumpro também essa incongruência.
Sou tu. Quem te conhecia e me vê, comove-se, porque a semelhança física lhes perturba a serenidade. Não posso fugir à minha herança genética - tenho as tuas pernas, os teus joelhos, o teu olhar. Sou o teu fenótipo, a que se parece contigo.
Ultimamente até me tenho convencido que teremos destinos semelhantes. Revejo-me na tua orfandade, a tua real, a minha simbólica, ambas penosas. Ficaste sozinha muito cedo, apaixonaste-te, abraçaste a família do teu marido como se fosse a tua. Dei por mim a imaginar o que sentias com as pessoas que para mim eram avós e tios, mas para ti eram sogros e cunhados. Nunca me falaste disso, sou eu que o imagino agora, do outro lado da vida, com experiência e idade para o supor. Seria sempre pacífico? Estarias sempre plena e completa? Sentirias solidão no meio das festas? Sou tu, mais uma vez, Tu não tinhas a tua mãe. Eu sei o que isso é, agora.
Como tu, acordo com os olhos inchados e os pés gelados. Detesto pentear-me, como tu, mas num momento fico para lá do apresentável, outra incongruência que não deslindei. Não é beleza, a gente brilha, acho que é a tal energia. Tua.
Como tu fervo para apertar cordões, encontrar a chave da casa ou o telemóvel na carteira. A mesma impaciência. O nervoso miudinho. Os suores.
Como tu, as fúrias, as intempéries, os impropérios. Num coração grande que se esquece logo e não guarda rancor.
Amo amendoins, laranjas, pão. Como tu, no sofá da sala, a descascá-los, a ver televisão e a contar as histórias da Niassa, a macaca que veio no barco do tio marinheiro. E os meus filhos a vidrar, como eu e a Ana, à tua volta. As laranjas que comeste na minha gravidez. O pão quente que me davas nos finais de tarde escuros escuros, parecia noite, a caminho de casa, pão quente e guarda-chuvas.
Como tu, a "figadeira". A "breca"... serão as maleitas aprendidas ou geneticamente herdadas?
Trago a tua aliança. Sou tu. Como falo. Como penso. Como educo os meus filhos. Como trato os outros. Como respiro.Não é (só) saudade, nem memória... É consubstancialidade.
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