Monday, June 23, 2014

Exame Nacional de Matemática

Costumo dizer, a brincar, que desisti da matemática assim que começou a misturar letras e números. Tive o primeiro choque no sétimo ano, no final do 1º período - nível três, na pauta. É curioso que não me recordo das notas ou dos próprios testes, só mesmo do impacto que foi, lá em casa, tirar quatro níveis três no natal, eu que, até então, sempre tinha tido cinco a tudo. Ia-me azedando as rabanadas. Ninguém quis saber se tinha sido a transição de uma escolinha básica, o André Soares, para um grande liceu, o D. Maria II, se estava numa idade difícil, se a matéria era difícil, se os professores eram exigentes, que estudasse e pronto. Foi o que fiz, muito. Tanto é que, no segundo período subi todos esses níveis para nível cinco, directo. Agora, como professora, acho que isso foi extraordinário. Na altura, não fiz mais do que a minha obrigação. A matemática deu-me água pela barba, recordo-me. Tinha um livro de exercícios resolvidos, que tinha sido do meu primo, mas não era por isso que estava resolvido, era usado, de facto, mas resolvido por conceito, era assim, mostrava-nos como fazer, passo a passo, para resolver lá os problemas e as equações até chegar à solução. Isto tudo na era pré-google, na era em que a escola pública não era obrigada a oferecer apoios e em que o dinheiro não sobrava para explicações. Tardes inteiras e muitas lágrimas. Sozinha, no meu labor. A frustração, a persistência, a teimosia. Lembro-me de ser um processo árduo. Os primeiros exercícios e, às vezes, muitos de seguida, nunca davam certo, era triste, mas como? como? vamos lá fazer outra vez. Lembro-me da alegria, os primeiros resultados a bater certo, ou quase, e vamos lá tentar outro, acho que já estou a perceber, vamos lá tentar mais outro. E depois o prazer da mestria, quando já todos pareciam fáceis, afinal era fácil, não tinha nada que saber! Enfim, tudo isto me ocorreu, hoje de manhã, naquela sala em serviço de vigilância, já do lado de cá, eu de pé, eles sentados, eu distante dos números, eles a lutar com eles, alguns na luta, outros no desencanto, fora dali, sonolentos a ressacar o jogo do mundial até de madrugada. Adolescentes e manhãs é um paradoxo, sempre disse.O tédio da tarefa de vigiar, depois de lidas todas as obscenidades nas paredes, observadas todas as rachadelas nas paredes, lidas as instruções de evacuação em caso de incêndio ou sismo, não poder sentar e escrever tudo isto, não poder ler. Inveja da funcionária que lê, no corredor, não está a vigiar, pode ler, aqui nem água se pode beber. Alguns lutam com os compassos, mordem a língua. Aquela já acabou. Acabou num instante, o suficiente para a sua sabedoria ou vontade de a mostrar. Esta aqui nem sequer começou. Vai entregar em branco. Preencheu o cabeçalho, deitou a cabeça na mesa e dormiu. Ainda lhe toquei, já vou professora. Deixá-la dormir, pelo menos não incomoda. Admira-me que não haja mais tumultos em exames. Eles que vêm contra-vontade, é obrigatório; eles que têm de estar calados durante duas horas, eu diria que muitos não são capazes de manter silêncio, nunca o fizeram o ano todo, em nenhuma aula e depois ali, por milagre, respeitam. Afinal conseguem.Oxalá não ressone; se entra um inspector dizemos-lhe que está a raciocinar, a med(e)itar ou algo assim. Hordas de Vanessas por esse país fora chegam às salas de exame, maquilhadas, a cheirar a tabaco, leggings de padrões e t-shirts a revelar a barriga,unhas pintadas ou de gel, extensões, monos e madeixas no cabelo, artilhadas, mas não para a matemática. Não as estou a ver naquela minha labuta, naquele esforço. Se calhar a culpa é nossa, os colegas também não as sabem motivar, ou são sinais dos tempos, ou é a escola de massas, ou estou a exagerar. Eles também me parecem fora do contexto. Vêm de chinelos de dedo, havaianas, calções floridos, camisolas de alças. Nós a avisar que no primeiro caderno podem usar calculadora, esqueceram-se dela, um nem caneta tem. A escola empresta, só tens de escrever, desligar o modo mundial e raciocinar, ainda não estás de férias, precisas deste exame para passar. Ou não. Se reprovares abrimos um curso vocacional, financiado, damos-te aulas de apoio pedagógico e encaminhamos-te para a psicóloga da escola para te recuperar. Dorme, Vanessa, para o ano tratamos disso.

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